domingo, 27 de junho de 2010

O EFEITO GAIA: Ética Ambiental e Educação em Direitos Humanos.


Quando os estudos sobre violência simbólica, do francês Pierre Bourdieu repercutiram no Brasil, na década de 70, os nossos educadores ficaram chocados em descobrir que eram um dos principais reprodutores da ordem social (Gonçalves e Gonçalves, 2010:28) e executores da violência simbólica. Hoje, 40 anos depois, a violência simbólica, física, dura e as incivilidades fazem parte do cotidiano da escola e refletem como a cidadania, enquanto exercício da prática de uma educação política, é desrespeitada pela Família, pela Escola, pela Igreja e pelo Estado.

Toda essa rede hegemônica exerce sobre o indivíduo e também sobre o coletivo social, o que Bourdieu conceituou como habitus, o processo de internalização das estruturas externas do mundo (id:51). A violência do ser humano contra outro ser humano tem ultrapassado esse nível de relação, de microssistema, para outros níveis, mesossistema e exossistema, chegando finalmente na sua visão de mundo que engloba o macrossistema da realidade social (Oliboni,2008:33), é nessa interrelação de violência sistêmica que o ser humano atua como predador da natureza.

Na raiz dessa percepção está em entender que a natureza é uma coisa, um objeto, com fins utilitários. Essa é a percepção da ética ambiental antropocêntrica, chamada de concepção utilitarista preferencial: “Do ponto de vista da moral antropocêntrica, todas as formas de vida existem para servir à espécie humana.” (Mota,2009:18).

Em contraponto têm surgido novas perspectivas éticas ambientais não antropocêntricas, como a senciocêntrica, defendida por Peter Singer, teórico sobre a abolição dos maus tratos e uso de animais para fins humanos, cuja perspectiva avança, mais limita-se aos seres que possuem autoconsciência da dor, ou seja, sejam sencientes. “Um princípio básico é o princípio da igual consideração de interesses semelhantes. Igualdade, que exija apenas consideração igual ao interesse dos animais em afastar de si a dor que os impossibilita de buscarem sua sobrevivência.” (id:20-21).

Na minha percepção esse posicionamento de Singer, avança, mas não rompe com  a ética ambiental antropocêntrica, pois limita-se ao não incluir integralmente a natureza: “O autor é cético acerca de incluir na comunidade moral, seres não sencientes(...) A dificuldade é ainda maior quando o objetivo é encontrar um critério que inclua nessa comunidade objetos naturais, ou a natureza como um todo.” (id:26). Além disso há interpretações derivadas dessa formatação que não se sustentam conceitualmente: “O projeto de Singer consiste, portanto, em elevar o estatuto moral dos animais, introduzindo-os no âmbito do alcance da proteção moral para pôr fim às práticas especiastas, sem diminuir o estatuto dos seres humanos.”(Kuhnen,2009:62), ora todo direito subjetivo moral ou natural, jurídico ou positivo, busca ser referendado por um sistema normativo que garanta a promoção e a proteção desse estatuto moral(Bobbio, 2004:7), mas os estatutos dos seres humanos e dos animais seriam antinômicos, ou seja, não podem ser realizados ao mesmo tempo: “Não se pode afirmar um novo direito (...) sem suprimir algum velho direito.” (id:20)


            Outro modelo não antropocêntrico é o biocêntrico, proposto por Paul Taylor, que questiona a crença da superioridade da vida humana em relação às outras formas de vida, baseando-se nas premissas básicas dos conceitos de “um bem que lhe é próprio”, e “um bem inerente” que deriva de uma forma de existir e de autorrealização. (Kuhnen,2009:62)

            Uma das inconsistências do modelo de Taylor, criticado por Gene Spitler, é a dispensabilidade do ser humano como componente dos ecossistemas da Terra, que segundo Taylor é uma das cinco realidades em que se fundamenta da condição de membro da Comunidade de Vida da Terra:

       Da integridade de todo o reino da vida, os humanos dependem absolutamente. Comprometer essa ordem, também compromete sua existência. O contrário, entretanto, não é verdadeiro, afirma Taylor. O desaparecimento da espécie Homo Sapiens não comprometeria a existência da Comunidade de Vida da Terra, sua presença não é necessária, sua extinção poderia até mesmo ser benéfica às outras formas de vida, visto que junto com ela desapareceria a destruição dos habitats naturais.(Mota,2009:64)


            Outro crítico é Louis G.Lombardi, defensor do antropocentrismo, que reconfigura o conceito de bem inerente criado por Taylor, argumentando que o ser humano o possui em maior grau, numa escala ascendente.(id:90) Já Nicholas Agar, classifica as teorias de Taylor e de Singer como individualistas e desenvolve a perspectiva da preservação de espécies, no lugar de universalizar ele relativiza, onde a importância de um organismo vai depender de sua representatividade na espécie. “Na perspectiva da preservação de espécies, muitos organismos são intrinsecamente valiosos porque representam o mundo.”(ibid:90)

            Considero que essas perspectivas precisam ser superadas, pois elas contribuem muito mais para dissipação de forças, perda de energia e de tempo preciosos diante da escalada dos fenômenos climáticos que enfrentamos, estamos lidando com a Natureza, precisamos operar o mais aproximado do seu próprio modus operandi, e ela  não discrimina espécies, reinos ou mesmo obedece a critérios arbitrários de classificação humana. A saída mais coerente parece caminhar para uma perspectiva sistêmica.

Até a década de 1990 poucas pessoas davam importância as noticias com relação as mudanças climáticas e ao aquecimento global. Mas a partir dessa época um novo campo do conhecimento científico começou a se estruturar. Com a junção de meteorologistas, geólogos, geógrafos, biólogos, físicos, químicos, oceanógrafos, e suas respectivas pesquisas deu-se início a um novo campo do conhecimento, a Ciência do Sistema Terrestre. (Milazzo e Carvalho,2008:7)

É interessante constatar como que no campo do desenvolvimento humano há uma convergência no mesmo sentido, ou seja, uma perspectiva sistêmica ou holística de estudo do próprio ser humano.

       para compreender a complexidade do desenvolvimento humano é necessário adotar uma perspectiva sistêmica que seja capaz de integrar os múltiplos subsistemas do individuo. Isto requer a contribuição de diferentes disciplinas, tais como, a biologia e a psicologia do desenvolvimento, a fisiologia, a neuropsicologia, a psicologia social, a sociologia e a antropologia. (Dessen e Guedea,2005:3)

Para termos uma perspectiva de uma ética ambiental sistêmica ou holística que faça jus ao conceito de ecológico ou ecossistemas, onde todos os membros componentes tem sua importância para o equilíbrio dinâmico, por suas características de interconectividade,  como é o caso da Hipótese Gaia, de onde pode-se ter um embasamento para uma perspectiva nesse sentido.

       Para entender melhor o que significam a interconectividade e a construção de novos patamares evolutivos, um grande exemplo é a hipótese Gaia, que foi retomada na década de 1960, por James Lovelock. Para esse cientista, a Terra é um organismo vivo auto-regulador.(...) Lovelock (1990) acreditava que o equilíbrio  que permite a vida  como a conhecemos relaciona-se a um processo de interação que envolve todos os elementos  vivos e  não vivos e o próprio planeta em sua dinâmica, fazendo com que a vida seja moldada às condições da Terra.(Camargo,2005:197)

            O diferencial da Hipótese Gaia é que ela não tem como excluir ninguém, seu modelo matemático e ecológico não permite, por isso a biota, as rochas, os mares, o ar estão todos interligados, lembrando que os animais, inclusive a espécie Homo Sapiens, tem seu papel ao expirar nitrogênio que interage com o reino vegetal.(Milazzo e Carvalho, 2008:8 e 10).

            Retomando a convergência das pesquisas da Ciência do Sistema Terrestre com a Ciência do Desenvolvimento Humano, que utilizam  o paradigma holístico ou sistêmico, podemos pensar em construir uma perspectiva de uma ética ambiental holística, (re)colocando o desenvolvimento humano a partir de suas interações com o ambiente ecológico. “é pelo processo de desenvolvimento que a pessoa adquire uma concepção mais ampla e diferenciada do meio ambiente ecológico, tornando-se cada vez mais capaz de envolver-se em atividades que revelem suas propriedades, sustentem ou reestruturem o ambiente.” (Dessen e Guedea,2005:7)
           
            As críticas ao argumento holístico, na ética ambiental, são focadas nos aspectos teóricos, filosóficos, ontológicos, sem diálogo dialético com as reconfigurações conceituais que fazem parte da dinâmica evolutiva da ciência.


       Na perspectiva holística, há uma crítica á concepção de que o homem seja parte externa à Natureza (...) há inúmeras similitudes e dependências entre o homem e a natureza, mas tal fato não leva em consideração a criação de identidade ontológica. Ademais, falar de uma harmonia eudomonística é uma contradição, pois o homem destrói a natureza para o seu bem-estar. (Kassmayer,2009:142)

            Bem distinto das evidências mais objetivas da Hipotése Gaia, ou seja, sua ideia não partiu de um querer político em “mudar o mundo”, não é um modelo “encomendado” para solucionar as questões ambientais e climáticas que enfrentamos hoje, inversamente, partiu de uma pesquisa empírica sobre a composição atmosférica de outros planetas e depois comparada à Terra, por curiosidade científica.

            O senso de emergência parece adiantar-se às pesquisas e as construções teóricas, principalmente no campo jurídico onde algumas normas ao serem aplicadas concedem o valor “em si” da natureza, e mesmo no comportamento cada vez mais consciente nas sociedades onde uma ética ambiental é mais predominante.

       A proliferação de normativas tendentes a proteger espaços naturais  ou espécies naturais em vias de extinção implica no reconhecimento fático dos direitos das coisas protegidas. Assim, poder-se-ia inclusive, nesse caso, tratar de “entidades naturais de direito” para referir-se a espaços protegidos, como um parque natural. As sociedades com consciência ecológica desenvolvida se comportam nesta hipótese “como se” as coisas protegidas tivessem direitos, que devem por sua vez ser tutelados. (id:145)

            Uma ética ambiental holística pode influenciar decididamente no membro do sistema da Terra com maior responsabilidade nos fenômenos climáticos que enfrentamos, o ser humano. É no desenvolvimento do ser humano, principalmente na sua educação, em todos os níveis de ensino, que a ética ambiental holística urge de chegar.

            Mesmo de forma não tanto elaborada, mas como uma consequência dos modelos holísticos implementados em projetos interdisciplinares em algumas escolas brasileiras, a ética ambiental holística já chegou e seus resultados são imediatos.

       A partir do momento em que possibilitamos ao estudante um movimento na construção do conhecimento, é desencadeado um processo de reflexão no qual o estudante inicia a elaborar questionamentos, como relata o E3: Comecei a repensar alguns de meus atos e me questionar sobre o porquê é tão difícil mudar os hábitos da população para melhor? Por que a cada dia tudo piora? O meio ambiente está sendo destruído, os animais irão morrer e nós seremos os principais prejudicados? (Durso e Borges, 2010:18)

O elo que podemos fazer com a educação em direitos humanos e a perspectiva da ética ambiental holística pode ser visualizada como Sacavino (2003) que considera que através da Educação para o Empoderamento é que pode haver a promoção do sujeito de direito, de forma pessoal, através da autoconsciência e da autopercepção, e de forma social, através da afirmação como sujeitos e da tomada de decisões. A autora classifica ainda o empoderamento em suas dimensões básicas, em aspectos pessoais: cognitividade, criatividade, autoconceito, auto-estima e confiança; e em mecanismos sociais:participação e a organização. Ainda segundo a autora a geração desse empoderamento necessita de um espaço e de uma construção do poder local, essa junção seria a base da construção da democracia participativa e popular: ascendente, inclusiva, plural, simétrica e igualitária.

na última década de 1990 não se avançou praticamente nada na consciência de sujeito de direito. Os avanços são na área da educação em direitos humanos para defender e preservar o estado de direito, assim como na articulação da educação em direitos humanos com a construção da democracia, mas não na consciência de sujeito de direito. (Sacavino,2008:126)

             Qual educador ou ambientalista não sonha que seus alunos e concidadãos, que após passarem alguns dias debatendo, refletindo e aprofundando sobre as emergentes questões climáticas e ambientais atuais, concluíssem com uma frase como essa? “Graças ao trabalho integrado, amadureci como pessoa, refleti como estudante e mudei minha conduta como cidadão.” (Durso e Borges, 2010:15) Esse é o EFEITO GAIA que desejo como educador.

Referências:

1.CAMARGO, Luís Henrique Ramos de. A Ruptura do meio ambiente: conhecendo as mudanças ambientais do planeta através de uma nova percepção da ciência: a geografia da complexidade. Rio de Janeiro. Bertrand, 2005. 240p.
2.BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro. Elsevier, 2004. P.212.
3.DESSEN, Maria Auxiliadora; GUEDEA, Miriam Teresa Domingues. A ciência do desenvolvimento humano:ajustando o foco da análise. PAIDÉIA - Cadernos de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto.USP. V.15.n.30. jan-abr 2005. Ribeirão Preto. Disponível em: http://sites.ffclrp.usp.br/paideia/artigos/30/03.htm . Acesso em 22 maio 2010.
4.DUSO, Leandro; BORGES, Regina Maria Rabello. Mudança de atitude de estudantes do ensino médio a partir de um projeto interdisciplinar sobre temática ambiental. ALEXANDRIA. Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, V.3,n.1, p.51-76, maio.2010. Programa de Pós-graduação da UFSC. Florianópolis. Disponível em: http://www.ppgect.ufsc.br/alexandriarevista/numero_1_2010/leandro.pdf . Acesso em 22 maio 2010.
5. GONÇALVES, Nádia G.; GONÇALVES, Sandro A. Pierre Bourdieu: educação para além da reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.118p.

6.KASSMAYER, Karin. Apontamentos sobre a ética ambiental como Fundamento do Direito Ambiental. EOS. Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Faculdade Dom Bosco. V.1,n.4, ano III.Curitiba. 2009.p.128-146. Disponível em: http://www.dombosco-online.com.br/faculdade/revista_direito/1edicao-2009.php. Acesso em 20 maio 2010.
7.KUHNEN, Tânia. Por uma ética ambiental: o questionamento da sacralidade da vida humana. Controvérsia. Revista Eletrônica de Filosofia.V.5,n. 2. 2009.p.54-66. Florianópolis. Disponível em: http://www.controversia.unisinos.br/index.php?e=10es=9ea=111 . Acesso em: 20 maio 2010.


8.LOVELOCK, James. Gaia: um modelo para a dinâmica planetária e celular. In: THOMPSON W.I (org.) Gaia, uma teoria do conhecimento. São Paulo. Gaia, 1990,p.77-90.

9.MILAZZO, Alexandre Dacorso Daltro; CARVALHO, Anderson Abbehursen Freire de. Uma relação entre a Teoria Gaia, o Aquecimento Global e o Ensino de Ciências. ALEXANDRIA. Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, V.1,n.2, p.107-120, jul.2008. Programa de Pós-graduação da UFSC. Florianópolis. Disponível em: http://www.ppgect.ufsc.br/alexandriarevista/numero_2/artigos/alexandre.pdf . Acesso em 22 maio 2010.

10.MOTA, Rosane Maria. Desafios da filosofia moral contemporânea: a questão do valor no desenvolvimento de uma teoria ética ambiental. 2009. Dissertação. Mestrado em Filosofia, na área de Ética e Filosofia Política. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis. Orientadora: Profa. Dra.Sônia T.Felipe.

11.OLIBONI, Samara Pereira. O Bullying como violência velada: a percepção e ação dos professores. 2008. Dissertação. Mestrado em Educação Ambiental. Universidade Federal do Rio Grande. FURG. Rio Grande. Orientadora:Profa.Dra.Valéria Lerch Lunardi.

12. SACAVINO, Susana; CANDAU, Vera Lúcia. Educação em Direitos    Humanos: temas, questões e propostas.Petrópolis: DP ET Alli, 2008.165p.

______________SACAVINO, Susana.Educação em direitos humanos e democracia. In: CANDAU, Vera Lúcia; SACAVINO, Susana. Educação em Direitos Humanos; construir democracia. Rio de Janeiro:DPeA,2003.

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